domingo, 31 de março de 2019

My heart is like a haunted house

Tem meses que me encaro como uma casa. Consigo visualizar claramente uma residência de alvenaria, nada dessas coisas modernas que aprendi na faculdade. Uma casa clássica desses filmes românticos e do seriado Madmen.

As pessoas entram, elas ficam, eu crio memórias, elas vão embora. Moro sozinha com meu gato, mas isso não é motivo de tristeza. 

Tenho uma sala de estar com lareira e tapete, porque sinto muito frio. Uma cozinha grande e com mesa, pois gosto de cozinhar e comer sentindo o cheiro que ficou. Um quintal com muito verde, porque gosto de cuidar de plantas (mesmo quando não dá certo). Uma varanda na frente com rede, porque gosto de fumar no balanço. Uma escada de madeira, pois escadas de mármore são geladas demais. Tem cortinas de algodão, todos os assentos são confortáveis, as paredes cheias de arte - arte de gente que eu conheço, folhetos de exposições, lembranças que me fazem bem olhar todos os dias.

Meus traumas são como problemas estruturais nessa minha morada. 
O do meu pai morava na garagem, porque nós gostávamos de assistir programas sobre carros. Quando tive de descrever isso pro psicanalista, disse que era como um vazamento numa parede, que eu sabia que deveria quebrar tudo e refazer o encanamento mas não tive força por muito tempo então mascarava o problema com massa corrida e pintura, até aquilo rachar e vazar de novo.
O da minha mãe mora na lavanderia, porque eu lembro de cenas muito fortes nesse lugar - uma vez, com menos de 5 anos, ela achou uma camisa do meu pai com o colarinho manchado de batom. Eu odeio lavar roupa. É o único lugar da casa que está fechado há muito tempo sem uso, sem máquinas, com vários problemas: o telhado está pra cair, as torneiras não funcionam, as máquinas quebraram há muito tempo. 
O da minha vó morava na sala de TV, porque sempre assistimos muita TV juntas. A televisão ainda é velha porque hoje a nossa relação mudou bastante mas ainda assistimos novelas desde que sou pequena. É um lugar confortável mas não aconchegante.
O da minha tia morava na sala de jantar. Ela sempre foi dessas visitas que criticam seu cabelo depois do "oi tudo bem?" e quando era pequena me dizia que eu ia engordar se não me cuidasse por causa disso ou daquilo. Hoje eu amo comer e a sala é um espaço claro e caloroso.

Meu quarto é meu coração. Qualquer pessoa pode passar por ele, mas poucas mudam coisas dentro do espaço. 
Um amor do passado quebrou algo que só recentemente consegui consertar. Uma nova paixão deixou o cheiro no travesseiro. Uma amiga tem umas roupas emprestadas no armário mas faz tempo que não nos vemos. Um amigo me deu uma pelúcia com a qual durmo todos os dias mas nossa relação é distante. 
As pessoas que vem e vão não me fazem sentir falta delas nesse espaço. E digo isso sem nenhuma agressividade: fico feliz que seja um lugar particular.
Além de felicidade, eu sinto paz de ter o meu lugar - mesmo que dentro da minha cabeça - e saber dos detalhes que preciso para continuar vivendo bem aqui, além de saber os motivos de cada alteração na casa. Pode ainda ter alguns rasgos nas paredes, uma torneira ou outra que não funciona, uma luz que pisca toda vez que acendo; mas me inspira olhar à minha volta e ver o abrigo que construí.

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Faço terapia há mais ou menos 1/5 da minha vida. 
Sou arquiteta. 
Essa visão faz muito sentido pra mim e adoro analogias.